O Partido Republicano era uma insignificante minoria
Artigo de Leon Beaugeste [+]
RIO DE JANEIRO [ ABN ] — Dom Luiz de Orleans e Bragança escreveu: “A Monarquia brasileira, no momento da catástrofe, contava um número ínfimo de adversários declarados. Ao contrário, os seus partidários e admiradores constituíam a quase totalidade da população”.
Por mais que alguns republicanos agora queiram provar que a Monarquia caía de podre, que a República era um anseio popular e que o movimento pela sua proclamação estava organizado até os ínfimos detalhes, os fatos foram bem diferentes. O Imperador e a Princesa Isabel eram respeitados e admirados pela gente humilde, que no ano anterior deixou de ser escrava. O Partido Republicano conseguiu eleger apenas dois deputados nas eleições de agosto. Nas ruas, as simpatias que conseguia angariar eram episódicas e pouco eficazes.
Cada intelectual, cada grupo, cada partido possuía uma razão própria, um descontentamento particular contra o Governo, simbolizado às vezes pelos ministros, às vezes pela Princesa Isabel, às vezes pelo Conde d’Eu e, freqüentemente, pelo próprio Imperador.
O ideal republicano não era o ideal das figuras mais representativas daquela época. O grosso das classes conservadoras, céticas ou descrentes em relação à Monarquia, tinha em certa suspeição o sistema republicano. Onde esta encontrava os seus adeptos mais fervorosos era na classe dos estudantes, entre os bacharéis novatos ou entre os “cadetes filósofos” da Escola Militar. Benjamim Constant possuía um campo de ação circunscrito entre a jovem oficialidade, mas o grande público ignorava-o completamente.
Era, com efeito, nessas classes de letrados inexperientes, cheios de entusiasmo juvenil, mas sem grandes responsabilidades sociais, e muito menos políticas, que o Partido Republicano recrutava a quase totalidade dos seus adeptos. Os próprios elementos da grande aristocracia rural, embora desgostosos com a Monarquia, não se tinham bandeado inteiramente para a República: revelavam uma certa recalcitrância em fazê-lo. Os republicanos eram, por isso, já nas proximidades de 15 de novembro, principalmente gente de cidades e vilas, e não gente do campo. É o que se depreende do testemunho insuspeito do deputado Sebastião Mascarenhas. Contestando que a expansão da idéia republicana fosse devida aos despeitos provocados pela Abolição, dizia ele, na sessão de 11 de setembro de 1888:
— Sr. Presidente, o entusiasmo com que as idéias republicanas são abraçadas em Minas não provém do despeito por causa da abolição, como entendem alguns nobres deputados e o Governo. Para provar isso, basta dizer que a maior parte dos republicanos é residente nas cidades e vilas.
A história do deputado republicano Antonio Romualdo Monteiro Manso é um bom exemplo. Eleito para ocupar a vaga deixada pelo Barão de Leopoldina, que se tornara senador, ele seria o único deputado republicano daquela legislatura, porque os três anteriores não haviam conseguido reeleger-se. No dia 6 de setembro de 1888, apresenta-se na Câmara um tipo caricato para assumir a sua cadeira. Convidado a prestar o juramento, Manso declarou:
— Não posso prestar juramento, porque é contra as minhas convicções.
Exatamente 10 palavras. E o presidente da Câmara declarou:
— Então o nobre deputado se retirará e a Câmara decidirá.
E a Câmara deliberou suprimir a obrigatoriedade do juramento, para os que alegassem convicções pessoais. Durante os 5 dias que duraram as discussões, a imprensa transformou o deputado em celebridade nacional. Convidado a assumir a sua cadeira, Manso confirmou sua declaração anterior:
— Mantenho a minha declaração de que não posso prestar juramento, por ser de encontro às minhas crenças políticas e religiosas.
Exatamente 20 palavras. Estas, mais as 10 anteriores, foram os únicos discursos que ele pronunciou, durante todo o período do seu mandato. Mas a imprensa lhe abria todas as portas: “Honramo-nos hoje dando na primeira página o retrato do ilustre democrata Dr. Monteiro Manso. Deputado republicano da importante e altiva província de Minas, ele tem sabido corresponder aos desejos de seu partido”.
Na Câmara, dado o seu mutismo e incompetência, foi interpelado:
— Ainda Sua Excelência não se dignou dizer-nos em nome de que princípio foi enviado ao seio da representação nacional. Ainda não se dignou dizer-nos se é, como muitos outros que nós conhecemos, um republicano monarquista, ou um monarquista republicano.
Uma revolta militar que não era contra o Imperador
O marechal Deodoro escreveu duas cartas ao seu sobrinho Clodoaldo da Fonseca, da Escola Militar, em 1887 e 1888, nas quais afirma:
“República? Seria coisa impossível, verdadeira desgraça. República no Brasil e desgraça completa é a mesma coisa”. Pouco depois, o mesmo homem proclamou a República…
No dia 4 de novembro, graças a um pedido de seu sobrinho, tenente Clodoaldo da Fonseca, Deodoro recebeu em sua casa um grupo de oficiais. O marechal, que padecia de dispnéia (falta de ar) devido à sua arteriosclerose, os atendeu na cama. Os militares lhe disseram que o Visconde de Ouro Preto pretendia reorganizar a Guarda Nacional – um corpo militar formado e armado por homens ricos no interior do País – e fortalecer a Polícia no Rio, para contrapô-las ao Exército. Deodoro comentou:
— Só mesmo mudando a forma de governo.
Os jovens oficiais ficaram surpresos com o comentário do marechal, e o capitão Antonio Menna Barreto arriscou uma pergunta:
— Podemos agir afoitamente no sentido de congraçarmos mais elementos?
Deodoro respondeu como quem dá uma bênção:
— Podem.
É hoje assente entre os historiadores que o marechal Deodoro somente na tarde do dia 15 de novembro aceitou a deposição do Imperador, e o fez a contragosto, instado pelos líderes republicanos. Quanto a seu irmão Hermes, que comandava as tropas na Bahia, relutou muito em aceitar a mudança de regime, só a reconhecendo a 18 de novembro, após a partida da Família Imperial para o exílio.
Se entre os “casacas” se falava de República, entre os militares a conversa dominante era a de derrubar o Ministério de Ouro Preto, e não a Monarquia. Na reunião no Clube Militar, na noite do dia 9, na mesma hora em que a Monarquia se deliciava no baile da Ilha Fiscal, em nenhum momento se colocou a necessidade de proclamar a República. Até Benjamim Constant não usou a palavra República.
A intenção de Deodoro, ao pôr-se à frente das tropas amotinadas, na manhã do 15 de novembro, não era derrubar a Monarquia, era tão-somente derrubar o Ministério chefiado pelo Visconde de Ouro Preto, contra o qual o Exército alegava sérios agravos. Tanto que, ao penetrar no Quartel General, em que estava instalado o Governo, bradou não o “viva a República” da legenda, mas sim “viva Sua Majestade, o Imperador”.
É o que relata Pedro Calmon: “O grito não foi de viva à República; nem podia ter sido. Deodoro não se pusera à frente da tropa para fazer a República. Tomara-lhe a chefia em plena marcha, para derrubar o Ministério e impor as decisões da revolução em nome do Exército e da Armada. Ao subir as escadas que conduziam ao andar superior – onde o esperava o Gabinete vencido – Deodoro, de quepe na mão, gritou `viva Sua Majestade, o Imperador’. É o que nos contam José Bevilacqua, Cândido Rondon, o embaixador do Chile na sua correspondência”.
O mesmo afirma a Princesa Isabel, nas singelas e despretensiosas notas autobiográficas, que intitulou “Alegrias e Tristezas”, e foram publicadas na íntegra pela “Tribuna Imperial”, de Petrópolis: “O marechal Deodoro da Fonseca, descontente com o Ministério, nada mais desejava, então, senão derrubá-lo. No dia da sublevação, entrou com suas tropas no Quartel General, dando vivas ao Imperador”.
Ao entrar na sala do Quartel General, Deodoro cumprimentou primeiro seu primo, o ministro da Guerra, Visconde de Maracaju. Em meio ao maior silêncio, o marechal fez um discurso intempestivo. Dirigindo-se a Ouro Preto:
— Vossa Excelência e seus colegas estão demitidos por haver perseguido o Exército. Os senhores não têm nem nunca tiveram patriotismo. Patriotismo tem tido o Exército, e disso deu provas exuberantes durante a campanha do Paraguai.
O marechal lembrou ainda os três dias e noites que passou no meio de um lodaçal, durante a guerra. Impassível, o Visconde de Ouro Preto ouviu tudo sem interromper. Depois, disse a Deodoro:
— A vida política, senhor general, tem também os seus dissabores. E a prova disso tenho neste momento, em que sou obrigado a ouvi-lo.
O marechal demitiu o Ministério e afirmou que Ouro Preto e Cândido de Oliveira, ministro da Justiça, ficariam presos até serem deportados para a Europa. E concluiu:
— Quanto ao Imperador, tem a minha dedicação, sou seu amigo, devo-lhe favores. Seus direitos serão respeitados e garantidos.
Disse também que encaminharia uma lista de nomes do novo Ministério a D. Pedro II. De República, nada falou.
Uma geringonça aos solavancos, proclamando a República
O embaixador da França relatou ao seu país, na ocasião da proclamação da República: “Dois mil homens, comandados por um soldado revoltado, bastaram para fazer uma revolução que não estava preparada, ao menos para já. Informações particulares permitem afirmar que os próprios vencedores não previam, no começo do movimento, as condições radicais que ele devia ter”.
Quanto à organização das forças que derrubaram de supetão a Monarquia, elas lembravam mais uma geringonça andando aos solavancos do que um trem bem azeitado. O dia 15 foi repleto de lances de confusão, de líderes que deram shows de hesitação (a começar por Deodoro), de liderados que acreditaram em boatos e saíram de quartéis pensando que estavam apenas derrubando o Ministério.
Benjamim Constant estivera com Deodoro, no dia 14 de novembro, e estava desolado. Ao descer do bonde no Largo de São Francisco, encontrou por acaso Aristides Lobo e Francisco Glicério, e lhes deu péssimas notícias sobre o estado de saúde do marechal.
— Creio que ele não amanhece, e se ele morrer a revolução está gorada. Os senhores, civis, podem salvar-se, mas nós, militares, arrostaremos as conseqüências das nossas responsabilidades.
Na tarde do dia 15, ao perambular pela cidade e constatar que pouquíssimas pessoas falavam de República, Constant percebeu o quanto a situação era esdrúxula. Encontrando o jornalista republicano Aníbal Falcão com um grupo de amigos, na Rua do Ouvidor, disse-lhes:
— Agitem o povo, que a República não está proclamada.
Aníbal Falcão redigiu uma confusa moção, dizendo que “o povo, reunido em massa, fez proclamar o governo republicano”. E conseguiu colher cerca de 100 assinaturas do “povo em massa”.
A dificuldade realmente intransponível era fazer Deodoro aceitar um ministério presidido por Silveira Martins, que fora indicado ao Imperador pelo Visconde de Ouro Preto. Eram inimigos desde o tempo em que o marechal serviu no Rio Grande do Sul, quando disputou com Silveira Martins as graças da Baronesa do Triunfo. Somente ao saber, já de noite, através de Benjamim Constant, que o Imperador havia nomeado Silveira Martins para a chefia do Ministério, Deodoro teria se resolvido a aceitar a instauração do regime republicano. Também se tentou que Deodoro fosse ter um encontro pessoal com D. Pedro II, mas o marechal recusou-se com estas palavras:
— Se eu for, o velho chora, eu choro também, e está tudo perdido.
A Princesa Isabel confirma: “A idéia de chamar para formar ministério a Silveira Martins, seu inimigo mortal (uma vez que Ouro Preto estava preso, e, solto sob palavra, pediu demissão), facilitou o trabalho dos republicanos que o cercavam, os quais aproveitaram-se do descontentamento da situação e conduziram-no à República”.
O marechal Deodoro jamais contestou que, até às vésperas de 15 de novembro, tivesse servido devotadamente ao Imperador. A sua adesão às idéias de Benjamim Constant data, talvez, de 10 a 12 daquele mês. Certo dia, já presidente, recebeu Deodoro no Itamarati um cavalheiro que alegava ser republicano de longa data, batendo-se pela República desde 1875.
— Pois eu, meu caro senhor, não dato de tão longe. Sou republicano de 15 de novembro; e o meu irmão Hermes, de 17!
Deodoro era presidente da República, quando o convidaram para visitar o ateliê de Rodolfo Bernardelli, no qual se achava, quase concluído, o quadro representando a proclamação da República. Na tela, a sua figura aparece montando um bonito cavalo. Ele se voltou para os que o acompanhavam, e comentou:
— Vejam os senhores… Quem lucrou, no meio de tudo aquilo, foi o cavalo!
A multidão não participou, nem aplaudiu a República
Raramente uma revolução havia sido tão minoritária. Partindo do centro para a periferia, que republicanismo poderia existir no vasto Império brasileiro?91 A sintomática ausência de apoio popular ao golpe de 15 de novembro foi ressaltada por diversas testemunhas.
Arthur Azevedo, que viu o cortejo militar do dia 15 de novembro, afirma: “Os cariocas olhavam uns para os outros pasmados, interrogando-se com os olhos, sem dizer palavra. Na Rua 1º de março a passeata desfilou em silêncio, com Deodoro tentando manter-se ereto na sela e apresentando sintomas de recrudescimento de sua doença cardíaca”.
O Conde de Weisersheimb, embaixador da Áustria no Rio, comunicou a Viena, em despacho feito cinco dias após a proclamação da República: “A grande massa da população, tudo quanto não pertencia ao Partido Republicano, relativamente fraco, ou à gente ávida de novidades, ficou completamente indiferente a essa comédia, encenada por uma minoria decidida”.
O Visconde de Pelotas constatou a mesma indiferença: “A Nação foi estranha a esse acontecimento, que aceitou como fato consumado. A sua indiferença foi injustificável, como ainda agora está sendo diante de novas ocorrências, e as conseqüências deste erro não se farão esperar muito”.
O conspirador Aristides Lobo registrou na imprensa paulista: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada”.
Capistrano de Abreu, que não era político, relatou ao Barão do Rio Branco como assistira aos acontecimentos. Vindo do Campo de Santana, ficara “impressionado depois de ter visto uma revolução. Só há uma palavra que reproduz o que vi: empulhamento. Levantou-se uma brigada, chegaram os batalhões um a um, sem coesão, sem atração, sem revolução, e foram-se encostando um ao outro, como peixe na salga. Quando não havia mais batalhão ausente ou duvidoso, proclamou-se a República, sem que ninguém reagisse, sem que ninguém protestasse”.
Segundo Joaquim Nabuco, a proclamação da República exerceu, sobre a população atônita, um efeito similar ao do tiro de Caramuru entre os assombrados indígenas.
Entre os próprios conspiradores, a figura digna e honrada do Imperador era um empecilho aos seus projetos. Em uma das reuniões preparatórias do movimento republicano, a 6 de novembro, em casa de Benjamim Constant, assentavam-se planos quando Benjamim indagou:
— E que faremos do “nosso Imperador”?
Um silêncio profundo foi a resposta. A figura bondosa e justa do Monarca infundia respeito a todos aqueles conspiradores, impedindo uma resolução. Quebrou o silêncio o tenente Manuel Inácio:
— Exila-se!
— E se resistir?
— Fuzila-se! – declarou o tenente.
Todos se levantaram, numa reprovação. Refletindo a repugnância de todos, Benjamim exclamou:
— Oh! O senhor é sanguinário! Pelo contrário, devemos cercá-lo de todas as garantias e considerações, porque é um nosso patrício, e muito digno.
Tanto Benjamim Constant como Deodoro deviam grandes favores pessoais ao Imperador. Ordenado o embarque da Família Imperial, procuravam atordoar-se com as responsabilidades que acabavam de assumir, esquecendo assim a ingratidão praticada. Pela manhã do dia 17, estava Benjamim no seu gabinete no Ministério da Guerra, quando lhe foram comunicar que o Monarca já se achava a bordo. Ele se deteve um instante e comentou:
— Está cumprido o mais doloroso dos nossos deveres.
Interrogado por um jornalista em Lisboa, sobre o embarque apressado que a Família Imperial foi obrigada a fazer, o Conde d’Eu afirmou:
— Disseram que não nos queriam expor ao furor popular. Porém, o que há de exato é que os revoltosos estavam convencidos de que o povo aclamaria o Imperador, se porventura o visse na rua.
O Congresso da República, inaugurado como enterro de primeira classe
Magoaram profundamente o Imperador as atitudes de alguns revolucionários, por ocasião da proclamação da República. No seu exílio em Paris, ele se lamentou em presença do Conde Afonso Celso:
— A História me fará justiça, eis a minha fé consoladora. Atribuíram-me frases que não proferi, atos que não pratiquei. Aceitei os acontecimentos, sereno e resignado. Uma coisa única me incomodou deveras: o aparato da força desenrolada em torno do Paço da Cidade. Soldados a pé e a cavalo, guardando todas as portas, apontando para mim e para a minha família armas ameaçadoras, como se fôssemos réus e capazes de nos evadirmos. Não bastava, para segurança deles, a minha palavra? Havia um oficial de cavalaria que observava da praça todos os meus movimentos, acompanhando-me como uma sombra, se eu passava de uma sala para outra. Senti ímpetos de sair à rua para lhe dizer: “O sr. não me conhece, certamente. Não sou homem que fuja, ou me oculte. Não se moleste por minha causa. Fique tranqüilo, que me encontrará sempre no lugar que me compete”.
Um artigo atribuído a Oliveira Martins, e transcrito no “Journal des Débats”, coloca nos seguintes termos a questão da dotação de cinco mil contos de réis, recusada pelo Imperador, mas noticiada por Rui Barbosa como tendo sido aceita: “Enquanto o velho Soberano se achava entre o Brasil e a Europa, isolado no mar, sob a placidez estrelada da noite do Atlântico, a sua consciência de homem justo não lhe exprobrou decerto essa falta de caráter com que o Sr. Rui Barbosa o maculava pelo telégrafo. Depois disso, o Imperador chegou a Lisboa, e o mundo soube que uma das suas primeiras palavras foi a denúncia do crime de uma falsidade”.
O Imperador D. Pedro II tinha grande prestígio nos Estados Unidos. O seu amor à liberdade, a sua atividade, a singeleza da sua pessoa, impressionaram sempre os americanos.
Os discursos pronunciados no Senado americano, quando se discutiu o reconhecimento da República brasileira, consistiram quase que exclusivamente, não no elogio dos vencedores, mas na exaltação das virtudes do grande vencido. O governo americano foi o último, de todos os governos do novo continente, que reconheceu a República no Brasil; e se inspirou, de certo, para essa demora, na frieza, na quase hostilidade com que a imprensa recebeu a revolução. O correspondente do País, em Nova York, rememorava estes fatos, insistindo na pouca simpatia que os americanos manifestavam pela nova ordem de coisas no Brasil.
O presidente dos Estados Unidos, Harrison, declarou que a impressão deixada pelo Imperador durante sua viagem àquele país, em 1876, fora de tal maneira favorável no espírito do povo americano, que ele não estava disposto ao reconhecimento do novo Governo, antes de aguardar alguma manifestação da opinião pública brasileira.
No seu primeiro dia de existência, a 15 de novembro de 1890, teve o Congresso intuição inteira e exata da vida que o esperava, do seu destino, do seu papel, do seu futuro.
Atopetada a sala de gente, repletos o recinto e as galerias, tudo permaneceu impassível, gélido, imóvel, sem um grito, sem um viva, sem um movimento espontâneo, sem uma aclamação, sem um frêmito, enquanto o secretário, a custo e a poder de copos d’água, lia, lia a interminável mensagem presidencial que falava em nome da Providência e da espada!
Terminada a melopéia, cada qual foi se esgueirando muito caladamente, tomando o seu chapeuzinho de adesista ou de histórico, com uma convicção bem arraigada:
— Qual… aqui não está o povo! Procurem-no em qualquer outra parte. Nesta sala, não!
Um dos corifeus do novo regime disse:
— É impossível assistir-se a cerimônia mais lúgubre. Parecia um enterro de primeira classe!
A República logo mostrou as suas garras
Rui Barbosa foi um dos articuladores da proclamação da República, mas dela logo se desiludiu. Em um discurso no Senado, em 17.12.1914, ele critica a República e exalta o Imperador D. Pedro II. O texto é bastante conhecido, mas poucos sabem o contexto em que se insere, porque a citação é sempre apresentada isolada:
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. Essa foi a obra da República nos últimos anos. No outro regime, o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem perdido para todo o sempre – as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma sentinela vigilante, de cuja severidade todos se temiam e que, acesa no alto, guardava a redondeza, como um farol que não se apaga, em proveito da honra, da justiça e da moralidade”.
Já nos primeiros anos da República, o marechal Deodoro estava tão cansado diante da impossibilidade de vencer a desordem, que disse:
— Vou mandar chamar o dono da casa.
E mandou um emissário ao Imperador exilado, que respondeu:
— Se me chamarem, voltarei. Conspirar, nunca!
O sociólogo Gustave Le Bon traçou de nossa terra este quadro vergonhoso: “Um só país, o Brasil, tinha escapado a essa profunda decadência dos povos sul-americanos, em virtude de um regime monárquico que colocava o governo ao abrigo das competições. Depois o país ficou entregue a uma completa anarquia, e em poucos anos a gente incumbida do poder dilapidou de tal maneira o Tesouro, que os impostos foram aumentados em proporção desmedida”.
Com a proclamação da República, foram rapidamente implantados em nossa terra a carestia de vida, a dívida pública interna e externa multiplicadas, o déficit assoberbado em todos os orçamentos, o desequilíbrio econômico e financeiro, os compromissos aterradores do erário, o descrédito da Nação, juntando-se a todos esses males o domínio nefando das paixões políticas, a ambição das altas posições, a mania das dissipações, o culto à politicagem, à burla eleitoral, e o modo elétrico de enriquecer uns tantos nababos, ontem sem eira nem beira, apenas com o recurso da esperteza!
Não se precisa mais do que folhear as páginas de nossa História para ver como, no tempo do Império, era bem mais adiantada que nos dias de hoje a mentalidade dos nossos políticos e dos nossos dirigentes. Essa República, como ela aí está, é uma traição que se fez ao País. Proclamaram a República em nome da liberdade, e em nome da República suprime-se a liberdade. Substitui-se uma dinastia honesta por vinte e duas oligarquias ferozes e vorazes que, na União e nos Estados, sorvem-nos, gota a gota, todas as nossas energias.
A República custou caro ao Brasil. As flutuações do câmbio, que da taxa de 28, que vigorava em 1889, baixou até a de 6; o aumento enorme da dívida pública, ocasionado pela megalomania implantada em todos os departamentos da administração; a multiplicação dos cargos públicos e das sinecuras – tudo isto trouxe como conseqüência o agravamento incessante dos impostos.
A proclamação da República implantou na realidade uma ditadura
Quando falaram a D. Pedro II sobre a possibilidade da proclamação da República, ele comentou:
— Então vocês verão o que é “poder pessoal”…
De fato, vinte e quatro anos após a proclamação da República, o senador Muniz Freire analisava o novo regime:
“O País anda entregue às tenazes de um sistema que não é mais do que o poder pessoal universalmente organizado. Poder pessoal praticamente irresponsável do Presidente da República. Poder pessoal dos indivíduos, famílias ou facções que se assenhorearam dos Estados. Pior, muito mais direto, muito mais ofensivo, muito mais em contato com a carne do que o outro. Poder pessoal dos chefes políticos. O Império desmoronou-se, o poder pessoal do Monarca foi destruído, e no seu lugar surgiu essa vegetação daninha de poderes pessoais muito mais intoleráveis.
O objetivo do poder pessoal que hoje domina em toda a parte é de garantir aos seus detentores, suas famílias, seus parentes e sequazes o emprego que fornece o ganha-pão, ou a posição que dá o prestígio à sombra do qual aumentam os bens e se fazem as fortunas. Honradamente, quando se é honrado, e por todos os meios, mesmo os mais cínicos e criminosos, quando não se possui escrúpulo, nem probidade, nem decoro. O Brasil político pode ser considerado um agregado de ventres”.
O Visconde de Pelotas, escrevendo em 1890 ao Visconde de Ouro Preto sobre a proclamação da República, declara: “O pronunciamento da guarnição do Rio, que deu como resultado a proclamação da República, surpreendeu-me mais do que a V. Exa., que dele teve aviso horas antes. Não julgava possível a República enquanto vivesse o Imperador, e daí a minha surpresa. Se de mim tivesse dependido a sua permanência como Chefe da Nação, afirmo-lhe que não teria sido deposto. A República teve contra si haver sido feita por um pronunciamento militar, representado pela quinta parte do Exército”.
Os revolucionários foram uns 300 militares do Exército e da Armada. Com 14 milhões de habitantes, o Brasil tinha um Exército composto de 13 mil homens, entre oficiais e praças. O golpe que derrubou a Monarquia foi tramado e executado por militares, que só na última hora convidaram os civis a entrar na conjura. As tropas com as quais contavam os rebelados não passavam de 500 homens. A superioridade numérica da ordem era esmagadora.
Um republicano e conspirador, Aristides Lobo, deixou registrado sobre o 15 de novembro, em artigo para a imprensa paulista: “Por ora, a cor do governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula”.
No fim da tarde, o desencantado redator ocupou o Ministério do Interior do Governo Provisório, caminho que o levaria a perceber, pouco depois, que aquela não era a República dos seus sonhos.
Benjamim Constant era um dos “bacharéis de farda”, militar “dublê” de filósofo positivista. Não cuidava e possivelmente pouco entendia das coisas de sua profissão. Chegara ao posto de tenente-coronel comandando uma escola de cegos, o que há de menos militar neste mundo. Fora daí, não desenvolvia outra atividade que não fosse ensinar matemática na Escola Militar e propagar doutrinas positivistas pelos cafés da Rua do Ouvidor. Republicano por sectarismo filosófico, ele era a alma do pequeno grupo de conspiradores que fazia pressão sobre a vontade amolecida de Deodoro.
Quando foi a Versalhes, para se despedir de D. Pedro II, o Conde Afonso Celso mencionou o nome de Benjamim Constant:
— Talvez Vossa Majestade ignore que ele faleceu doido. É o que afirmam testemunhas fidedignas.
— Já me tinham contado. Pobre homem! Conheci-o muito e o apreciava. Acredito que nos últimos tempos houvesse sofrido perturbações das faculdades mentais. Dessa maneira posso explicar o seu procedimento para comigo, de quem se mostrava tão afeiçoado. Não creio que a ambição o tivesse arrastado. Sua posição sob o Império era mais invejável do que a de um funcionário do governo militar. Era querido e respeitado de todos. Deve ter padecido extraordinariamente, se conservou a posse da razão. Sensível como era, a consciência da responsabilidade no descalabro nacional o deve ter torturado. Caso tenha agido com sinceridade e discernimento, a perda das ilusões, tão rápida e completa, certamente lhe infligiu punição atroz.
Apesar da propaganda republicana, dorme um monarquista em cada brasileiro
Instalados no poder sem apoio da opinião pública, os republicanos logo sentiram necessidade de adotar medidas ditatoriais para silenciar a oposição monarquista, e assegurar desse modo a própria permanência no governo.
Nos cem anos durante os quais vigorou a proibição de sequer falar-se em Monarquia, o País foi programaticamente induzido a esquecê-la. Diretrizes governamentais de todos os tipos, explícitas ou dissimuladas, foram adotadas nesse sentido. Substituíram Pedro I por José Bonifácio, na iconografia oficial da Independência, mas a figura do Patriarca não calou fundo, além do que ele próprio era um defensor da Monarquia. Então, o papel de Tiradentes foi enfatizado e realçado a um grau nem sempre compatível com a realidade histórica. Ainda e sempre, para esconder ou minimizar o papel de Pedro I – um monarca – no processo da Independência.
Desde os primeiros dias da República, os autores de livros didáticos para os cursos primário e secundário, segundo critério de orientação e exigências do Ministério da Educação, passaram a só estampar o retrato de Pedro II com as longas barbas brancas e o aspecto cansado dos seus últimos anos de vida, para associar à Monarquia a imagem de velhice, decrepitude e coisa antiga. Esses mesmos livros tratavam, e ainda hoje tratam, de evidenciar as glórias da proclamação da República, o heroísmo de Deodoro e o idealismo dos seus companheiros, como se tivessem participado de uma feroz batalha em prol da liberdade.
Monteiro Lobato compara o procedimento das pessoas no tempo do Império com o que passou a vigorar na República:
“Dom Pedro II agia pela presença. O fato de existir no ápice da sociedade um símbolo vivo e ativo da honestidade, do equilíbrio, da moderação, da honra e do dever, bastava para inocular no País em formação o vírus das melhores virtudes cívicas.
O juiz era honesto, se não por injunções da própria consciência, pela presença da honestidade no trono. O político visava o bem comum, se não pelo determinismo de virtudes pessoais, pela influência catalítica da virtude imperial. As minorias respiravam, a oposição possibilitava-se: o chefe permanente das oposições estava no trono. A justiça era um fato: havia no trono um juiz supremo e incorruptível. O peculatário, o defraudador, o político negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionário relapso – o mau cidadão, enfim – muitas vezes passava a vida inteira sem incidir num só deslize. A natureza o propelia ao crime, ao abuso, à extorsão, à violência, à iniqüidade, mas sofreava as rédeas aos maus instintos a simples presença da eqüidade e da justiça no trono.
Foi preciso que viesse a República, e que se alijasse do trono a força catalítica, para patentear-se bem claro o curioso fenômeno. O mesmo juiz, o mesmo político, o mesmo soldado, o mesmo funcionário, até 15 de novembro honesto, bem intencionado, bravo e cumpridor dos deveres, percebendo ordem de soltura na ausência do imperial freio, desenfrearam a alcatéia dos maus instintos mantidos de quarentena.
Daí o contraste, dia a dia mais frisante, entre a vida nacional sob Pedro II e a vida nacional sob quaisquer das boas intenções quadrienais que se revezam na curul republicana.
Pedro II era a luz do baile: muita harmonia, respeito às damas, polidez de maneiras, jóias de arte sobre os consolos, dando o conjunto uma impressão genérica de apuradíssima cultura social.
Extinguiu-se a luz: as senhoras sentem-se logo apalpadas, trocam-se tabefes, ouvem-se palavreados de botequim, desaparecem as jóias”.
No interior do município de Bagé, no Rio Grande do Sul, alguns anos após a proclamação da República, um cidadão idoso perguntou a um viajante, que por ali passava e lhe pedira pousada:
— E como vai a política? O Imperador já está bom?
— O Imperador?! Mas ele já morreu, e desde 1889 estamos com a República proclamada!
— Mesmo?! Coitado do Imperador! Era tão bom! Por que fizeram essa injustiça?
O viajante procurou justificar o ato de Deodoro, mas o velho não se conformava:
— Coitado do Imperador! Era um santo!
Novas explicações sobre o que era a República e o que significava. O velho campeiro, porém, estava longe do mundo e indiferente a tudo, pela distância e isolamento em que se encontrava. Não podia conceber o fato consumado. Finalmente, encerrando a palestra, desabafou:
— É por isso que tudo vai tão mal… Coitado do Imperador!
Leon Beaugeste, articulista e cronista da ABN, é médico, escritor, autor do livro A Volta ao Mundo da Nobreza e Revivendo o Brasil Império, publicado sob o pseudônimo Leopoldo Bibiano Xavier.